Era 27 de maio de 2009, quase 16h, quando a família de dona Maria do Socorro dos Santos saiu apressada de dentro de casa. Fugiam do estrondo que vinha do rio Pirangi. A parede da Barragem de Algodões havia estourado há poucos minutos e as águas arrastavam todo o vale com uma onda que chegou a 20 metros de altura. Não houve tempo suficiente e todos foram levados. A agricultora sobreviveu, mas as notícias das próximas horas foram catastróficas: Maria perdeu o marido, duas filhas, a mãe e uma sobrinha de apenas um ano e três meses.

Maria do Socorro dos Santos foi arrastada junto com a família, perdeu duas filhas, o marido, a mãe e uma sobrinha (Foto: Pedro Santiago/G1)

Dona Maria do Socorro é a vítima mais evidente da tragédia de Algodões, que completou oito anos no sábado (27). Ao todo, nove pessoas morreram, cerca de 2 mil pessoas ficaram desabrigadas e 1.038 casas foram destruídas pela força da água. Depois de quase uma década de batalha judicial entre o governo do Piauí e as vítimas, o Tribunal de Justiça homologou em abril deste ano um acordo de indenização no valor de R$ 60 milhões para um total de 922 famílias.

“É um momento em que a Justiça foi feita, mas isso me trouxe muita dor e sofrimento. É um direito de eles terem pago sim, mas não que isso vá servir para aliviar meu coração, minha tristeza. Indenização não alivia a dor, é um meio para oferecer ao meu filho algo melhor. Era para o pai dele fazer isso, mas ele não está aqui”, disse dona Maria, com a voz sempre embargada.

O G1 voltou a Cocal, cidade mais atingida pela tragédia, e conversou com algumas vítimas sobre o fim do processo judicial civil e o pagamento da indenização. Em geral, o sentimento é que finalmente os “alagados”, termo que faz referência às pessoas que sofreram com a tragédia, estão recebendo algum reparo. Todos falam que o dinheiro é bem vindo, mas sempre ficam tentados a fazer uma troca impossível: a indenização pelas vidas e bens materiais perdidos. Mais do que o recurso financeiro, queriam suas vidas como eram antes do estouro.

Estrago causado pelo estouro da Barragem de Algodões (Foto: Divulgação/Avaba)Estrago causado pelo estouro da Barragem de Algodões (Foto: Divulgação/Avaba)

Estrago causado pelo estouro da Barragem de Algodões (Foto: Divulgação/Avaba)

Em todas as entrevistas, sempre que o repórter perguntava sobre o dia do rompimento, o gestual era o mesmo: olhos para baixo, voz embargada, choro, saudade e tristeza. Foi assim com dona Maria do Socorro. Ela contou que toda a sua família estava em casa quando escutou o estrondo da água se aproximando. Após ser arrastada, ela e um cunhado conseguiram se segurar em cima de um cajueiro, onde ficaram até às 4h do dia 28, quando foram resgatados. Até então, acreditava que, como ela, todos tinham conseguido sobreviver.

“Eu sabia que água tinha levado (o marido e as filhas), mas assim como eu tinha me salvado e meu cunhado, eu pensei que eles também teriam conseguido. No outro dia, começaram a encontrar os corpos. Acharam o do meu marido, da minha mãe e da minha filha. Da minha outra filha nunca foi encontrado. Na época ela tinha 10 anos, iria completar 19 anos este ano. Mesmo com ela sumida, eu nunca tive a esperança de que encontrá-la viva”.

Para dona Maria, o dinheiro da indenização é um recurso que tem apenas a tristeza como fonte. “Até hoje não tem nada de melhora. Mesmo pagando, não melhora nada para mim. Foram cinco vidas da minha família. Não perdi porco ou gado, foram vidas e isso não tem dinheiro no mundo que pague. Pode até melhorar para o meu filho, mas para mim não, porque não tem dinheiro que pague as minhas filhas, meu marido e a minha mãe. A gente lembra de tudo a toda hora. Podem passar até 20 anos, mas o sofrimento é um só”, disse com franqueza desconcertante.

O filho de Maria, que hoje tem 16 anos, segundo sua mãe, é um jovem calado e retraído. Ela contou que todos os anos, sempre no mês de maio, ele fica ainda mais reservado, quieto, chegando a faltar aulas por semanas. “Antes do rompimento ele era alegre, muito conversador, mas não é mais. Todos os anos quando completa ano (da tragédia), ele passa muito tempo sem ir para o colégio e eu não forço. Ele não desabafa com ninguém”, disse.

 Maria de Fátima Pereira perdeu duas filhas com rompimento da barragem (Foto: Pedro Santiago/G1) Maria de Fátima Pereira perdeu duas filhas com rompimento da barragem (Foto: Pedro Santiago/G1)

Maria de Fátima Pereira perdeu duas filhas com rompimento da barragem (Foto: Pedro Santiago/G1)

A tragédia de Algodões fez outra Maria, a de Fátima Pereira, também perder duas filhas. Oito anos atrás ela mandou as duas garotas, de 11 e 16 anos, fazer compras em um comércio. Eram dias tensos aqueles, já que as famílias tinham sido removidas de suas casas por risco de rompimento da barragem, mas depois foram autorizadas a voltar. A mãe, com medo e receio, pediu para que o filho fosse trazer as irmãs de volta para casa, mas parte da parede do reservatório já havia rompido e as adolescentes estavam desaparecidas.

O corpo da jovem de 11 anos foi encontrado no dia seguinte, já o de sua irmã, de 16 anos, só apareceu no dia 30 de maio. Dona Maria não teve perdas materiais, sua residência não foi atingida. Após o ocorrido, a alagada ganhou uma casa, recebeu pensão e agora recebe a indenização pelas duas mortes, mas nada disso arrefece as sequelas deixadas pela tragédia.

“Eu achava boa era minha vida com a minha família antes (do rompimento), era muito melhor. Eu não tinha sofrimento, não tinha depressão. Quando a pessoa tem saúde, de todo jeito a coisa está boa. Sem saúde, a pessoa pode ter tudo, mas nada é bom. A minha casa era mais humilde, mas era muito melhor. Antes, eu tinha minhas filhas. Eu me lembro muito delas, o dia todo. De quando elas iam para o colégio, da gente cuidando dos canteiros. Lembro de tudo sempre”, contou.

Imagem mostra a Barragem Algodões dias antes de romper, no Piauí  (Foto: Magno Bonfin/TV Clube)Imagem mostra a Barragem Algodões dias antes de romper, no Piauí  (Foto: Magno Bonfin/TV Clube)

Imagem mostra a Barragem Algodões dias antes de romper, no Piauí (Foto: Magno Bonfin/TV Clube)

A meteorologia declarou que o período chuvoso de 2009 foi o mais intenso das últimas décadas. A barragem de Algodões já enfrentava problemas estruturais há anos e o governo do Piauí realizou obras na estrutura nas semanas que antecederam o rompimento. Por conta do risco, duas mil pessoas foram tiradas de suas casas, ao longo do vale do rio Pirangi, e colocadas em escolas e abrigos provisórios em Cocal.

Dias depois da evacuação da área, um laudo de um engenheiro contratado pelo governo atestou que não haveria mais risco de rompimento. Muita gente voltou para suas casas, mas outras preferiram a prudência e ficaram em Cocal. Outros ainda ficavam indo voltando entre a cidade e suas proriedades no vale do Pirangi. Havia um clima de medo, disseram os entrevistados.

‘Milagre’

Felipe dos Santos Portela, de 59 anos, estava subindo em sua moto quando a reportagem do G1 chegou a porta de sua casa. Simpático, o sorriso sumiu do rosto ao escutar a primeira pergunta: “como foi aquele dia em que a barragem estourou?”. “Foi muito triste”, disse silenciando por alguns segundos.

Felipe dos Santos foi arrastado às 16h do dia 27 maio de 2009 e foi encontrado quilômetros depois às 8h do dia seguinte (Foto: Pedro Santiago/G1)Felipe dos Santos foi arrastado às 16h do dia 27 maio de 2009 e foi encontrado quilômetros depois às 8h do dia seguinte (Foto: Pedro Santiago/G1)

Felipe dos Santos foi arrastado às 16h do dia 27 maio de 2009 e foi encontrado quilômetros depois às 8h do dia seguinte (Foto: Pedro Santiago/G1)

“Fui avisado na hora, que (a barragem) estava desabando. Vinha uma poeira, o mundo se acabando, eu vinha para casa de moto quando a água me pegou e me derrubou. Eu desmaiei na hora. Fui arrastado e não lembro de nada. Quando apaguei era entre 4h e 5h da tarde. Me acharam às 8h do outro dia, eu todo ferido, mas vivo. Fui encontrado no pé do morro, muito distante da minha casa. Foi um milagre”, contou.

O piauiense teve sua casa arrastada. No local também foi levado o seu comércio, todos os produtos e suas fruteiras que se espalhavam por cerca de 300 metros entre sua residência e a beira do rio Pirangi. Felipe era dono de um posto de telefonia, que resistiu à onda gigante, mas nunca mais abriu as portas e ainda hoje guarda a marca da altura em que a água passou.

Seu filho e sua mulher conseguiram escapar correndo, subiram para uma localidade chamada saco de São Francisco, onde dezenas de moradores da região se refugiaram. Felipe contou das dificuldades, principalmente no início, de seguir a vida sem casa ou ganha pão. Para ele, a indenização é um novo começo.

“A gente passou esses oito anos de sofrimento sem que o governo olhasse pelo nosso lado. Eu já comecei a fazer minha casa, vou refazendo minha vida aos poucos. Antes, a gente tinha a água do açude, a gente tinha um rio o ano inteiro (a água de Algodões perenizava do rio Pirangi), tinha fruteiras, tinha uma vida e perdeu tudo. Agora, com a ajuda de Deus, a gente vai começar de novo”, contou.

Felipe dos Santos mostra a marca da água no posto telefônico que era seu (Foto: Pedro Santiago/G1)Felipe dos Santos mostra a marca da água no posto telefônico que era seu (Foto: Pedro Santiago/G1)

Felipe dos Santos mostra a marca da água no posto telefônico que era seu (Foto: Pedro Santiago/G1)

Otacílio Caetano Machado teve expressivo prejuízo financeiro com estouro do reservatório. Quatro propriedades suas, todas estruturadas, centenas de fruteiras, 380 criações (entre caprinos e ovinos), 20 cabeças de gado foram arrasadas pela água de Algodões. Apenas com a roupa do corpo, sobreviveu toda a sua família.

“Eu chorei de alegria (ao saber do acordo para o pagamento da indenização). Foi muito sofrimento, mas agora a gente se sente aliviado. Não foi do jeito que esperava, porque muita gente morreu durante esse caminho até aparecer esse dinheiro”, disse se referindo aos mortos em decorrência do rompimento.

Conrado Viera, de 89, conta que perdeu muitos amigos após o rompimento de Algodões, em Cocal (Foto: Pedro Santiago/G1)Conrado Viera, de 89, conta que perdeu muitos amigos após o rompimento de Algodões, em Cocal (Foto: Pedro Santiago/G1)

Conrado Viera, de 89, conta que perdeu muitos amigos após o rompimento de Algodões, em Cocal (Foto: Pedro Santiago/G1)

A Associação das Vítimas e Amigos da Barragem Algodões (Avaba) defende que após a tragédia, dezenas de pessoas morreram por conta de depressão, alcoolismo, doenças crônicas. “Teve gente que sobreviveu e caiu numa tristeza profunda”, contou Corcino Medeiros, presidente da Avaba.

Seu Conrado Viera é um idoso de 89 anos que disse ter perdido muitos amigos e conhecidos nos anos pós-tragédia. Conversador, ele contou para o G1 que perdeu tudo com o estouro da barragem. “Da minha casa sobrou só chão”. Para ele, o pagamento da indenização demorou muito.

“É difícil pensar no que a gente era, e é agora. É muito tormento. Tiveram muitos idosos que morreram de tristeza, de desgosto pelo o que perderam. Nada disso foi fácil. Todo o processo foi um sofrimento para todos e muita gente ficou no meio do caminho”.

Fonte: G1 PI / Por Pedro Santiago

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